Páginas

31 de agosto de 2013

Santiago de Compostela

Sim. Para a pessoa que sou, para a capacidade física que tenho, e pelos joelhos que tenho, sim, eu fiz os Caminhos de Santiago. Cheguei, voltei, estou cá, estou viva. Posso ainda adiantar que estou mais viva do que estava. Talvez tenha sido este o momento em que ressuscitei por completo. 
Porque é que fiz os caminhos? 
Quando a nossa chefe nos pede para propormos actividades diferentes do habitual é sempre um pouco difícil de me lembrar de alguma coisa. A minha mãe tinha-me falado de fazer os Caminhos no fim das férias de verão, mas eu adiantei-me e quis aproveitar a oportunidade que me deram para dar ideias e lancei os Caminhos de Santiago como proposta nas guias. E lá fomos.
O que vos posso contar?
Foi ultra cansativo, mas valeu a pena. Eu fui aquela que ficou sempre para trás. Levavam todas foguetes no cu, menos eu. Era difícil. Enquanto se fazem os Caminhos (e agora falo com experiência própria) sofremos por vários motivos; deparámo-nos com muitas situações; conhecemos imensas pessoas de diferentes cantos do mundo; ganhamos bolhas e dores musculares; ficamos com sede e aprendemos a gerir os gastos de água; animamo-nos uns aos outros (mas somos melhores a desanimar); aprendemos a pensar e não falar; aprendemos a dar valor ao que deixamos para trás; aprendemos que "já estivemos mais longe"; fizemos auto-massagens visto que ninguém aturava as queixas uns dos outros; respondemos que estamos a fazer os Caminhos de Santiago; dizemos "gracias"; esquecemo-nos que temos de falar espanhol; a água portuguesa é melhor; a Mariana não gosta de cavalos, a Filipa não gosta de iogurte de banana (neither do I), eu não gosto de nadar, a Chica não sei.
O melhor?
Bem, o que foi bom, foi pouco comparado à percentagem do que foi mau. Mas foi tão bom que o mau acabou por ser anulado. A ver se me faço entender..
Para mim, houveram 5 bons momentos.
#1 - A Chegada ao Oásis
Foi no segundo dia. Foi, sem dúvidao dia mais cansativo (34 km, se não estou em erro). Já estávamos num ponto do dia em que todas nós nos queixavamos das mesmas coisas, uma delas: Não aguentamos mais. Não sei se sabem mas ao longo do caminho temos de seguir setas amarelas e conchas e existem alguns pontos onde nos são indicados os quilómetros que faltam para Santiago. Bem, nesse dia já tinhamos terminado os 34 km e apareceu-nos uma placa a dizer que faltava ainda mais 1 km para o albergue. Eu nem queria acreditar, só sei que nesse momento eu não conseguia parar de andar. Andamos por ruelas de uma aldeia com muitos descampados, quando chegamos a um ponto em que só víamos um casa. Não falamos umas com as outras, mas mais tarde viemos a concluir que todas pensavamos no mesmo: Tem de ser o albergue. Quando estávamos a pouco menos de 2 metros da placa, distância esta suficiente para conseguirmos ler ALBERGUE, a minha força acabou aí. Parei para ter a certeza se era verdade, eu queria tanto saltar de alegria mas não deu, o meu corpo não deixou.. Naquele momento eu não tinha controlo no meu corpo, era ele que tinha controlo sobre mim. E não, eu não pude saltar de alegria, apenas consegui entrar no albergue e dou graças às minhas pernas pela força que tiveram para o conseguir.
Quando entrámos não estava lá ninguém. Estava calmo e limpo, em contraste com 4 raparigas acabadas de chegar de um safari no deserto do norte de Espanha. Chamamos por.. ninguém, até que apareceu um homem alto, dentro de roupa preta (perguntei-me como é que era possível andar de preto num dia daqueles, mas depois lembrei-me que quem tinha acabado de fazer 34 km tinha sido eu), falava inglês, mas aquela não era a língua dele. Disse-nos que ninguém estava naquela casa quando ele chegou. Que éramos todos convidados visto que ninguém controlava as entradas e saídas do albergue (ou seja, dormimos em beliches, tomamos banho - com água de temperatura regulada -, lavamos a roupa, usufruímos de gás e temperos na cozinha, à pala!). Heaven. Se eu acredito em algum Deus, acredito que seja este homem. E o céu era o albergue. Ah! Deus ofereceu-me um creme especial para os joelhos! Sim, porque eu nesse dia não usei joelheiras e somando aos 36 km que tínhamos feito no dia anterior, dá 50 km aos quais os meus joelhos não estão habituados a fazer em menos de 48 horas. Por isso posso dizer que eu já falei com Deus e ele ouviu as minhas preces motherfuckers :)
#2 - As Termas (ou tanque de água quente)
Well, depois de nos termos deitado às 20h, acordamos lá prás 3h e posemo-nos a andar. Tudo normal. Um dos benefícios de andar de noite/madrugada, é o facto de se passar por cidades e elas estarem completamente calmas. Ninguém nas ruas, não há carros que nos interrompem as passagens, parece um sonho.. Daqueles em que somos atirados para um sítio isolado, onde qualquer movimento é provocado por nós. A conselho de uns portugueses que conhecemos no albergue, decidimos ignorar o sentido das setas e ir ao encontro das termas no meio da cidade pintada de noite. Apercebemo-nos que chegamos às termas porque havia um tanque abaixo do nível da rua onde estavamos, onde estavam os portugueses a molhar os seus pezinhos em água quente. Rapidamente nos descalçamos e decidimos fazer-lhes companhia durante os restantes 15 minutos de pausa. Assim que os meus pés emergiram naquela água, parecia que todo o meu ser estava lá dentro, o calor percorreu os ossos todos e de repente: nirvana. Todo o mal tinha saído do meu corpo e nada naquele momento me podia fazer mal. Mas pronto, esta sou eu a exagerar como é óbvio. No momento apenas me arrepiei de tal maneira que me questionei se na realidade não sou uma galinha depenada sem asas. Anyway, foi um bom momento. Anulou a dor durante um pedacinho. Mas só um pedacinho.
#3 - Pequeno-Almoço
Estávamos a caminhar à horas, no terceiro dia, e estávamos cheias de fome, ou seja, era hora de tomarmos o segundo pequeno almoço. Encontramos umas indicações para um café e estavamos mortinhas por lá chegar e comer algo mesmo carregado de calorias e energia, queríamos mesmo um croissant.
Bem, quando lá chegamos sentamo-nos todas à volta de uma mesa, tentámos fazer uns alongamentos enquanto não éramos atendidas. Quando apareceu um homem todos bem compostinho que nos pergutou o que queríamos. Perguntamos se haviam croissants, e o homem disse que não. Que bomba! Se fosse Deus tinha croissants de certeza! Adiante, acabamos por pedir umas "tostadas y café con leche". Enquanto esperamos os nossos pedidos foi uma de cada vez aliviar a bexiga. Eu fui a última e fiz um género de preparação psicológica em frente ao espelho do lavatório, afinal de contas, tive de avisar o meu estômago que não ia ter direito ao croissant por que tanto esperava mas a uma tostada. Quando voltei tinha 3 pares de olhos brilhantes a refletirem a luz do café con leche mais cremoso e morno de sempre, e a maior tostada da minha vida, com pão que tinha vindo de Heaven de certeza. Era uma baguete gigante dividida por nós as 4, e cada pedaço era tão grande! E tinhamos manteiguinhas e doces de morango e outros de pêssego. Aquilo tinha tão bom aspeto que o meu estômago aumentou uns centímetros para aquilo caber tudo, porque, tinha de caber! E soube tão bem. Ganhamos força para o resto da viagem.
#4 - Patrícia
Depois de um fantástico terceiro dia de 24 km (acho eu), chegamos a um albergue. Foi uma chegada bastante engraçada porque o albergue estava fechado e estava lá imensa gente já à espera de ir tomar um duche e cair no seu beliche. O que é mesmo engraçado é que ninguém estava a fazer uma fila. Quem estava na fila eram as mochilas e pertences de cada um, enquanto estes estavam sentados à sombra a aproveitar a confortabilidade do chão. O resto são suplementos, a gajo britânico mais lindo de sempre, o Ben & Jerry's, as voltas para encontrar um supermercado que vendesse gelo, o telefonema do terceiro dia para os pais, as mulheres que eram do Porto, a mulher impaciente que não encontrava nada que era dela, os espanhóis que não deixavam ninguém dormir e a mulher que os foi mandar calar e lhes deu um raspanete bem dado em português. Passando isto tudo à frente e sem grandes pormenores, vou-vos contar quem é a Patrícia. Quando acordamos (no 4º e último dia de caminhada - que não dava para acreditar), tomamos o pequeno-almoço e tínhamos connosco uma mulher que se tinha colado completamente. Acordamos às 2h, ou 3h, e desde aí ela esteve sempre connosco, e fez o caminho connosco. Foi estranho, porque ela estava vestida de preto e isso fez com que a minha cabeça não descansa-se o tempo todo. Isto não é nada normal em mim. Normalmente aceito as pessoas don't matter what mas naquele momento tê-la ali sem qualquer aviso, e sem nos ter dirigido qualquer palavra, foi estranho e dixou-me a mil. Mas vá, durante aqueles dias eu tinha sempre a minha cabeça a mil.. Tudo me preocupava, o facto de estar longe de um ponto estável não me deixa muito sossegada. Já tinha tido uma crise no segundo dia quando a Mariana decidiu fazer o caminho sozinha e deixou-nos as restantes 3 para trás. Quando continuamos a andar nunca mais encontrávamos a Mariana e eu consegui fazer um episódio de Inspetor Max na minha cabeça.
Voltando ao que interessa!
Já eram 7h e tal, ou seja, já havia luz suficiente, a mulher decidiu deixar-nos e seguir um caminho diferente para ir a um café porque estava muito cansada. Senti-me um bocado magoada. Estavamos juntas naquilo, todas nós estavamos cansadas, porque é que ela não continuou connosco? Bem, mas não a podia impedir, afinal pouco tínhamos falado o caminho todo até ali e a maior parte das conversas eram trocas de sorrisos.. O que é que eu podia fazer? Apenas deixa-la decidir por si. Sendo assim continuamos a nossa caminhada sem a mulher. Quando ela apareceu novamente, eu estava muito atrás das outras, e estava mesmo mal. Estava imensamente cansada e apetecia-me tanto parar ali, desistir. Os meus pés queixavam-se do peso todo que aguentavam à quatro dias. E eu não podia parar, não ali, não quando já nem via ninguém à minha frente. Não me podia abandonar quando já todos me tinham abandonado. E o facto da mulher ter chegado com um passo veracíssimo à minha beira, reparou que eu estava mal, pôs a mão dela no meu ombro, sorriu com os olhos cheios de simplicidade (visto que era a única coisa que podia fazer por mim naquele momento), e disse ¡Animo!. Foi o suficiente, o suficiente para eu conseguir acertar o meu passo com o dela e de conseguirmos encontrar as outras e ultrapassa-las. De repente eu e a mulher liderávamos aquilo tudo e eu senti-me tão perto da meta, cada vez estava mais rápida, cada vez tinha mais vontade de chegar e todo o cansaço, toda a dor, tudo de bom se tinha transformado em força e eu estava a adorar a sensação. Até que tivémos de parar porque estávamos a precisar de um Pequeno-Almoço. Queríamos um igual ao outro mas não foi possível porque o café onde paramos apenas tinha uma senhora a dar conta do recado, e haviam demasiados peregrinos para atender. Por isso as "tostadas" foram um fatia de pão de forma para cada uma, mais um monte de manteiga na beira do prato, e quando digo monte, é mesmo um monte, literalmente. Como tivemos pouco para comer a mulher perguntou-nos os nomes, no fim das apresentações, tínhamos uma amiga chamada Patrícia.
#5 - A chegada e o resto
Bem, eu nem sei como explicar.
Depois de sairmos do café, já não encontramos mais setas nem conchas. Tivemos de seguir o instinto (com a ajuda da Patrícia). Ainda andamos 2 ou 3 km. Agora íamos todas juntas e bem dispostas apesar do fraco pequeno-almoço. Só sei que no momento e que nos aproximávamos da Catedral a Chica começou a perceber que conhecia aquilo e que sabia o caminho para lá chegarmos. Começamos a acelerar sem realmente nos apercebermos até que a primeira ponta da Catedral é avistada. E esse foi o momento. O momento em que eu pego na mão da Chica e começo a correr. Eu estava a correr tão rápido que não consegui acreditar. Eu já não corria por felicidade, já não corria atrás de alguma coisa há tanto tempo, e esse momento foi tão bom em tantas maneiras. As ruas eram tão lindas e as pessoas olhavam para nós como se fossemos tolas, mas eu só queria que elas percebessem que eu não podia estar mais feliz. Quando chegamos, quando nos posemos à frente da catedral, ela era tão grande e eu era do tamanho dela. A Chica sentou-se a olhar para ela. Percebia-se que estava cansada, mas eu só queria dançar, e foi isso que fiz, eu dancei, dancei à volta da Chica, levantei-a e obriguei-a a dançar comigo. Eu tinha de libertar algo que estava preso há muito tempo cá dentro e eu nem sabia que o tinha. Agora sei que era felicidade fechada numa bola de gelo, estava congelada, e foi preciso andar 120 km para a conseguir abrir.
Tiramos umas fotografias com a Patrícia e trocamos contactos. Senti-me bastante feliz por saber que ela gostou da nossa companhia.
Subimos as escadas da catedral e quando chegamos olhamos lá para baixo e estava tanta gente lá, estava tanta gente onde eu tinha dançado, tinham-me todos visto e eu não tinha visto ninguém. Com muita atenção reparei que estava um homem ajoelhado no meio daquela gente toda, ele tinha uma mulher à frente dele e de repente ouviam-se palmas por todo o lado. O homem levanta-se e recebe o abraço da mulher. Nem acredito que assisti a um pedido de casamento. Se eu me senti tão nem sei como se estaria a sentir aquela mulher?! Fogo. Há coisas que me ultrapassam, esta foi uma delas. Depois descemos para irmos buscar o nosso diploma de peregrinas. Assim que o tínhamos a Patrícia despediu-se de nós. Eu fui a única que a abracei. Agradeci-lhe e ambas sorrimos mais uma vez, como se fosse a única coisa que soubéssemos fazer.
Voltamos para a catedral e estava lá um grupo de escuteiros que nós desconfiávamos serem dinamarqueses, visto que tinham umas fardas bastante parecidas com as guias da Dinamarca, e porque a maior parte eram rapazes loiros. Aproximamo-nos deles para ver a dança que estavam a fazer. Quando eles pararam ficaram a olhar para nós e nós para eles. Foi um olhar tipo "nós temos lenços, vocês também, querem conhecer-nos, boa, nós também, yah, agora vamos sorrir só para ficarmos mais atraentes e vocês caírem completamente na ideia de que vamos ser amigos e que nunca mais vamos sair de Santiago". No fim desta conversa de olhares começam todos a chamar-nos com sorrisos ultra rasgados e olhares a dizer "olhem! as nossas irmãs perdidas!". Bem tanto as raparigas e os rapazes eram super simpáticos. Fizeram-nos imensas perguntas e quando demos conta tínhamos praí uns 20 adolescentes a comerem-nos com os olhos cheios de felicidade porque éramos tão diferentes e afinal usávamos um lenço pelo mesmo motivo. Entretanto eles voltaram a juntar-se, mas desta vez à volta de um rapaz que, sentado no chão, escrevia num papel "FREE HUGS". Ao início não resultou e foram raras as pessoas que aderiram, por isso eles pediram-nos para escrevermos em espanhol, deram-me o papel e a caneta para mão, e mesmo a tremer como uma louca escrevi abrazos gratis. Eu acho que não era assim que se escrevia, mas a verdade é que muita gente começou a aderir e a fazer com que aqueles abraços tivessem imenso significado. Depois fizeram-me dar abraços também e eu digo-vos que foi uma sensação de carinho super estranha. Como se naquele momento qualquer pessoa era capaz de ser a pessoa mais especial para mim. E como se eu fosse a mais especial, porque nós estávamos mesmo no sítio onde os peregrinos chegavam, e muitos emocionavam-se com aquilo que fazíamos. O facto de batermos palmas quando alguém vinha ter connosco, animava as pessoas e trazia imensas até nós. Quando chegamos ao 100º abraço, fizemos a maior festa à feliz contemplada. Eles tinham prometido dar 100 abraços grátis, e ali estavam eles, todos.
Depois andamos pelas ruelas um bocadinho, fomos vê-los a almoçar, paramos em frente a uma loja de chocolate onde só podiamos tocar com os olhos, cantamos, improvisámos, até ao momento em que aquilo que cantavamos já fazia sentido e de repente juntamo-nos todos a cantar a música que a Chica tinha acabado de inventar juntamente com o ukulele do Yves. Foi mesmo emocionante, e fomos tão bem incluídas no meio deles todos que a última coisa que queríamos naquele momento era descansar ou sair de Santiago.
Deixo-vos aqui um vídeo para verem o quão fora do normal eles são. Digo que são fora do normal porque é raro encontrar alguém como estes escuteiros. São fenomenais:
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=_z22nqlYuK8
(eu e a Chica aparecemos no vídeo *happiness burning inside of me* ihih)

Canhotas :)
Raffa

2 comentários:

  1. Tão bonito! Fiquei emocionada, porque sei que ganhaste muito com esta experiência e to teu coração apesar de muito grande cresceu ainda mais. Adoro-te.

    ResponderExcluir